sexta-feira, 21 de maio de 2010

Por que a biblioteconomia brasileira é envergonhada?

IBLIOTECONOMIA ENVERGONHADA**
[*Setembro/2009*]

*Eliane Serrão Alves Mey*

Revisão de: Marília Motta Ludgero da Silva (a quem agradeço as correções da
língua portuguesa e dos excessos).

A Biblioteconomia é das profissões mais antigas do mundo.

A primeira, certamente, foi a de tradutor, ou intérprete, quando os
agrupamentos humanos se comunicavam entre si, ou quando o tradutor, dentro
de um agrupamento, interpretava a vontade dos deuses. Aquela outra
profissão, dita mais antiga, corresponde ao surgimento de bens materiais e
valores individuais, não coletivos. Apenas a existência da posse e da
herança faz com que a mulher se torne propriedade de um indivíduo, e não
parte de um clã (1).

Quanto à antigüidade da Biblioteconomia, pode-se afirmar que seus
fundamentos permanecem semelhantes ao longo dos milênios, embora suas
técnicas, seus e quipamentos, a produção e o uso de seus instrumentos, seus
focos, seus usuários e seus estudos se hajam modificado com relativa
freqüência.

E como se pode definir Biblioteconomia? Alguma literatura sobre o assunto
(2), embora não amplamente revista e citada, permite resumir certas
definições. Encontram-se os seguintes pontos essenciais, que a constituem,
de modo geral: a) aquisição dos registros do conhecimento (desde a coleta de
materiais tangíveis à criação de acervos digitais); b) organização dos
registros do conhecimento (inclui análise, representação, criação de
instrumentos de análise e representação, estudos teóricos e práticos, os
mais variados); c) disseminação dos registros do conhecimento (abarca tanto
os instrumentos de disseminação como os estudos sobre os usuários dos
registros e outros aspectos teóricos e práticos).
Existem problemas iniciais com o termo Biblioteconomia, que se podem
explicar, mesmo que não justificar:

a) a raiz *biblio*, derivada de *biblion*, não significa absolutamente
livro; origina-se do grego, quando nem remotamente existia algo assemelhado
a um livro; porém, referia-se à cidade de Biblos, produtora do papiro,
material utilizado para escrita à época, em rolos (tipo barra de rolagem,
como diz Manguel (3));

b) a palavra grega *théke *significa "caixa"e, por extensão, qualquer
contêiner onde o material bibliográfico se encontre: estante, sala, edifício
(cf. Edson Nery da Fonseca (4));

c) os sufixos *-nomo*, *-nomia* e *-nômico* derivam-se do grego -*nomos, -
nomia, -nomikos*, e se aplicam a normas, regras, administração (por exemplo:
agronomia, economia).

Portanto, a grosso modo, pode-se dizer que, segundo sua origem
etimológica, a *Biblioteconomia* consistiria no conjunto de normas, regras
ou leis para locais onde se guardam registros do conhecimento, ou na
administração destes. Venhamos e convenhamos, uma definição muito pobre e
acanhada para uma profissão de tal importância, respeitada no mundo inteiro
(aqui já é outra conversa, à qual se espera chegar).

Talvez por sua origem etimológica, talvez pelas veneráveis instituições
físicas, marcos arquitetônicos de prestígio, poder e cultura das nações, a
Biblioteconomia continuou sempre, até o final do século XX, com sentido
geográfico, espacial, vinculado aos edifícios-bibliotecas (5). A Profa.
Cordélia Robalinho Cavalcanti, certa vez, disse que chamar os profissionais
da Biblioteconomia de bibliotecários corresponderia a chamar os médicos de
"hospitalários". (Durante a Idade Média, de fato, houve uma ordem monástica
e guerreira, de hospitalários, cujos mosteiros deveriam abrigar peregrinos,
doentes e feridos.) Assim, as bibliotecas, ao longo da História,
destinavam-se à guarda, preservação e, até mesmo, disseminação de objetos
físicos, tangíveis. Ou seja, um local *para onde* os usuários se deslocavam
(ainda que para tomar emprestados os documentos), e não *de onde* se
de slocavam os materiais até os usuários – função hoje exercida pelos
arquivos eletrônicos na rede mundial de computadores.

Por fim, do mesmo modo, devido talvez a suas origens etimológicas, a
Biblioteconomia caracterizou-se por conjuntos de normas, regras e, durante
algum período ao final do século XX, pela administração. Nada tão enganoso,
porque tais conjuntos de normas e regras mostram-se mais mutantes e mutáveis
do que as roupas no dia-a-dia. E Biblioteconomia não é administração, mas
esta se torna parte da multidisciplinaridade biblioteconômica.
Estaríamos, então, diante de uma área com nome falso? Erro de identidade?
Amnésia profissional?

A partir do avanço significativo da eletrônica, durante e após a Segunda
Guerra Mundial (uso bélico), até chegar ao uso institucional civil (décadas
de 1970 e 1980) e ao uso individual (décadas de 1980, 1990 e neste início de
século), formou-se um novo conceito, o de "ciência da informação", com
inúmeros significados. Cabe aqui dizer que, como a "informação" é uma
espécie de cortesã requisitadíssima, com uma corte numerosa e nenhum senhor,
torna-se quase impossível determinar-lhe as características. Ela sempre
muda, de acordo com o requisitante de seus favores no momento.


Lógico, hoje o mundo vive de informações. Mas será que estamos em uma
sociedade da informação? Não creio!

Bem, talvez o mundo viva de conhecimento. Será que estamos em uma sociedade
do conhecimento? Creio menos ainda!

Na verdade, a informação pura e simples, ou seja, o conjunto de signos que
possui algum sentido, é manipulada, vendida, difundida, de acordo com
interesses específicos, desde sua produção até seu consumo.
Há algumas semanas, por exemplo, avassalam-nos diariamente "informações
sobre a gripe H1N1", por meio de boletins, notícias, entrevistas,
publicidade, entre outros. Nenhum deles, porém, repasso u-nos informações
corretas e significativas. Se a mídia é contra o governo, apenas apresenta
as mortes, para subentender que o governo não faz nada. Se os entrevistados
são a favor do governo, tentam minimizar o quadro. Por um lado, fecham as
escolas; por outro, continua o campeonato brasileiro de futebol, com
milhares de pessoas concentradas em um estádio. Ouseja, uma quantidade
massiva de informações manipuladas, de pouca valia para nós, cidadãos
comuns. Sociedade da informação? Que falácia!

Da mesma forma, a "sociedade do conhecimento" faz-se para poucos.
Historicamente, a "sociedade agrária" fazia-se para os donos da terra, e não
para os servos-camponeses que nela trabalhavam; a "sociedade industrial"
fazia-se para os donos das indústrias, e não para os operários que nelas
trabalhavam; a "sociedade do conhecimento", ou a terceira onda de Toffler
(6), faz-se para os poucos que detêm a posse ou os direitos (patentes) sobre
o conhecimento e a informação, não para aqueles que com elas trabalham (um
químico em uma indústria não usufruirá de seu conhecimento do mesmo modo que
o conjunto de acionistas majoritários). Bill Gates talvez seja um dos únicos
no mundo a desfrutar de seu próprio saber, em meio a bilhões. Sociedade do
conhecimento? Mais uma falácia!

Como todas as falácias globalizadas, a Biblioteconomia e a Documentação
internacionais mergulha ram de cabeça na Ciência da Informação, esta área
nebulosa, no limiar de várias outras, que ninguém sabe exatamente o que é.

O tesauro da Unesco, de 1975 (7), também confuso, na era pré-internet
estabeleceu sutis diferenças entre "ciência da informação" e "ciências da
informação". A Biblioteconomia seria um termo específico (TE) para Ciências
da Informação e um termo relacionado (TR) à Ciência da Informação. A
literatura sobre o tema é vastíssima e não nos preocupamos em citá-la.
Destaca-se Buckland (8), em texto clássico, que distinguiu três tipos de
informação: "como processo", "como conhecimento" e "como coisa"

Parece bastante claro que a informação, usada por biólogos, estatísticos ou
jornalistas, por exemplo, serve de base para a elaboração de um conhecimento
e seu conseqüente registro – só se pode tornar acessível, atingir o fim
último de disseminação, a partir de seu registro, mesmo em ambientes
naturais. (Um jardim botânico se diferencia substancialmente de um bosque,
mesmo que ambos se mostrem indispensáveis à humanidade) Neste caso,
portanto, a informação seria o fundamento para a produção de conhecimento e
de registros do conhecimento. Nós, profissionais bibliotecários, também o
geramos, dentro de nossa área; por exemplo: uma análise sobre comportamento
dos usuários frente a catálogos automatizados, ou bibliotecas digitais.
Informação, neste caso, caracterizar-se-ia como alicerce, ou como informação
basilar.

Muito diferente apresenta-se a "informação" com a qual trabalhamos, que
organizamos e disseminamos, a matéria-prima da Biblioteconomia, da
Documentação e de todas as ciências afins. A propósito, Muela Meza (9) nos
denomina "profissionais da informação documental". Não há como confundir a
informação basilar com a informação matéria-prima, ou informação documental,
ou registro do conhecimento. Na verdade, produzimos meta-informação; isto é,
informações sobre informações documentais ou registros do conhecimento.
Existem, ainda, outros tipos de "informação", como os bits e bytes e outros
fenômenos físicos da ciência da computação e das telecomunicações, que nos
interessam apenas na medida em que afetam ou facilitam nosso trabalho.

Ao partir da leitura de alguns textos internacionais sobre formação em
Biblioteconomia (10), verificam-se dois pontos-chave: a
Biblioteconomia continua valorizadíssima no exterior e cada vez mais os
cursos se denominam Ciência da Biblioteca e da Informação [Library and
Information Science, ou LIS].

Um parêntese: há algumas décadas, existiam dois termos para
Biblioteconomia em inglês: *Librarianship** *[*librarian *= bibliotecário; *
-ship *= sufixo para profissão; donde, Profissão de Bibliotecário] e *Library
Science* [Ciência da Biblioteca]. Quando a Biblioteca deixou de ser
geográfica para abarcar, também, o intangível,
acrescentou-se*Information* [Informação]
à Ciência da Biblioteca, gerando a LIS, sem abandonar a *Library*.

Após o Protocolo de Bolonha (11), já implementado em alguns países europeus
(embora com inúmeras críticas e restrições), as universidades apresentam o
modelo idêntico ao brasileiro: graduação, mestrado e doutorado. Os
bibliotecários formam-se na graduação, com possibilidade de adquirir o
certificado por outras vias, como mestrado ou especialização em
Biblioteconomia (não em Ciência da Informação), após a graduação em outra
área. Ou seja, a Biblioteconomia tem características próprias, arcabouços
teórico e prático próprios, que exigem formação específica. O que não
significa uniformidade nos currículos.

A França revela-se um caso à parte, ao proporcionar formações diferentes
para tipos diversos de atuação, embora permaneça com a Biblioteconomia. Há
duas associações profissionais de bibliotecários franceses: associação dos
propriamente ditos e associação dos bibliotecários especializados e
documentalistas. Oferece também um número significativo de cursos de
pós-graduação voltados à área de tecnologia da informação e comunicação, ou
seja, ao sentido amplo de Ciências da Informação.

O que acontece, no Brasil, que torna a Biblioteconomia tão envergonhada? Os
bibliotecários não querem ser bibliotecários, mas "cientistas da informação"
(qual das informações?), ou documentalistas, ou profissionais da informação
etc. Por que não queremos ser "simplesmente" bibliotecários? Existe o
estigma da palavra biblioteca; existem as bibliotecas escolares e públicas,
regra geral precárias ao extremo. Essas não são causa, porém efeito, ou
melhor, sintomas de doença social. Bibliotecas ruins implicam descrédito e
menosprezo aos bibliotecários, criação de barreiras contra a leitura e
contra o uso coletivo do conhecimento, contra a possibilidade de opção por
alternativas e caminhos vários.

E como se demonstra este desprezo profissional no Brasil, esta gritante
baixa-estima? Não apenas por trabalhos sérios e científicos (ver a tese
de Tereza Walter (12), entre outros grupos de estudos e pesquisas), porém
desde os cursos de Biblioteconomia em si. Certos profissionais de outras
áreas, mesmo participantes da formação de bibliotecários, julgam-se
superiores e, mais grave ainda, os docentes bibliotecários os aceitam como
tal! Há cursos no Brasil que, de tão descaracterizados pela
pseudo-interdisciplinaridade, por preconceitos medianos e desrespeitosos ao
meio, entraram em colapso, em crise de identidade, originando conseqüências
catastróficas à profissão e aos profissionais. Os desdobramentos iniciam-se
pelo não reconhecimento da cientificidade da área. O que se torna muito
estranho, *mesmo*.

Nós, bibliotecários, há milênios indexamos, criamos classificações do
conhecimento, criamos linguagens documentárias e representação documental;
estudamos comunicação com os usuários, e, pelo menos durante todo século XX,
elaboramos e utilizamos dados estatísticos para avaliação de nossos
instrumentos e seu uso (Otlet já tratava da bibliometria e faleceu em 1944)
(13). Nada disso chegou junto com os computadores, ou com a análise de
sistemas, ou com bancos de dados. Ao contrário, os conhecimentos
biblioteconômicos tornaram-se subsídios para o desenvolvimento de conceitos
teóricos nas áreas computacionais, entre outras.

Fique bem claro que não tenho absolutamente nada contra a computação! Adoro
os equipamentos que facilitam nossa vida, cada dia mais práticos. Quem,
vinte anos atrás, enfrentou filas e mais filas de bancos, ou pagamentos em
carnê nas lojas, ou até cadernos de armazém, sabe o quanto vale um
caixa eletrônico! Nada de voltar à era pré-internet, ou ao início do século
XX, quando tínhamos varíola, gripe espanhola, tuberculose e outros males,
sem vacina alguma, ou sem possibilidade de cura. Nada de saudosismos
baratos! Os séculos XIX e XX têm importância histórica, social, filosófica,
de grandes mudanças e acomodações da humanidade, mas viver no século XXI é
muito melhor...

Nada disso, porém, nos impede de reconhecer que, mesmo mudada, a
Biblioteconomia continua aí, abrindo portas a todos os seres humanos, não
para uma "sociedade do conhecimento", mas para a transformaç� �o, o
crescimento, o aprimoramento ético e social de cada indivíduo.

Por isto, indago: por que a Conferência Geral da IFLA, o mais importante
evento biblioteconômico do mundo, com textos absolutamente essenciais para
conhecimento e atualização dos bibliotecários, não vale pontos, ou quase
nada, no conceito CAPES? Por que o CBBD [Congresso Brasileiro de
Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação] é desprezado pelos
docentes de Biblioteconomia, com mínimo comparecimento? (Parece que a CAPES
também não reconhece este congresso.) Por que temos cursos
"burocrático-contabilistas" (especialmente na pós-graduação), onde se conta
a produção docente em números? Alguém já se deu ao trabalho de investigar se
uma produção excessiva não é fruto do...

Adriano Goulart - Bibliotecário
Blog:
http://adrianoagr.blogspot.com
Twitter: www.twitter.com/adrianoagr

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